Helder Macedo : da leitura dos contemporâneos
Maria João Cantinho
O poeta, romancista e ensaísta Helder Macedo é um
dos autores mais incontornáveis da cultura portuguesa. Apesar de razões políticas
o terem levado ao exílio e de viver em Londres desde 1960, a sua ligação à
literatura portuguesa manteve-se sempre, sobre a qual sempre leccionou e
trabalhou, enquanto scholar, tendo predominantemente
leccionado no King’s College. Após as obras de referência que publicou, sobre Cesário
Verde (Macedo, Nós, Uma Leitura de Cesário Verde, 1975 e O Romântico e
o Feroz, 1988), a lírica
trovadoresca (Helder Macedo S. R., 1976),
Camões (Macedo, Camões e a viagem iniciática, 1980), Bernardim Ribeiro (Macedo, Do
Significado Oculto de "Menina e Moça", 1977) e Sá de
Miranda, regressa agora com o livro Camões
e outros Contemporâneos.
A propósito do conceito de contemporâneo diz
Giorgio Agamben, no seu ensaio “O que é o Contemporâneo”, que «Os historiadores
da literatura e da arte sabem que entre o arcaico e o moderno há um compromisso
secreto» (Agamben, 2009, p. 70) . Esse elo deve-se,
não tanto ao fascínio particular que «as formas mais arcaicas parecem exercitar
sobre o presente», mas sobretudo porque «a chave do moderno está escondida no
imemorial e no pré-histórico» (idem). Seja como for, contemporâneo é aquele que
«fracturou as vértebras do seu tempo» e transformou a fractura numa forma de
abertura que liga os tempos e estabelece entre eles a sua ligação. Numa feliz
convergência com o pressuposto de Agamben, Helder Macedo, diz na “Nota
introdutória” da sua obra, que «Contemporâneos são todos aqueles com quem
vivemos» (Macedo, Camões e outros contemporâneos, 2017, p. 11),
independentemente de se situarem no passado ou no presente, estabelecendo nessa
matriz trans-histórica o ponto de partida do seu conjunto de ensaios. Fala
ainda, na mesma nota das «muitas vidas dispersas», aludindo a vários tempos
vividos, no passado, cruzando a sua biografia – e as relações com os vários
escritores portugueses que conheceu – com a sua obra e consequente leitura e
interpretação dos seus autores eleitos. Leituras que, como também aqui
frisamos, nem sempre foram consensuais e conformes à tradição académica em
Portugal. Em parte porque, além da literatura, a sua formação é também
histórica, o que lhe permitiu estabelecer essa relação transdisciplinar que
permite contextualizar textos de forma menos redutora, sobretudo nas análises
da poesia medieval e renascentista e em Camões.
Helder Macedo subdividiu assim a sua obra em quatro
capítulos, a saber: “Camões e a Modernidade da Tradição”, “História, Memória e
Ficção”, “Testemunhos” e “Textos e Contextos”. Se os textos que os compõem são
muito diversificados, podemos reconhecer nessa diversidade os seus núcleos
temáticos, que se interconectam deliberadamente entre eles, como nos diz o
autor, logo no início do livro, e é precisamente nessa matriz do contemporâneo
que podemos reconhecer a afinidade que lhes é intrínseca e que percorre os
temas e os «seus» autores.
O primeiro capítulo da obra é consagrada aos
autores da sua eleição como aqueles que trabalhou com Stephen Reckert, no
Cancioneiro medieval, Bernardim Ribeiro, autor de Menina e Moça, Sá de Miranda e Camões. Logo no primeiro texto deste
capítulo, o autor adverte o leitor para as armadilhas de uma leitura
descontextualizada da literatura medieval portuguesa e do próprio Renascimento,
ignorando os elos ocultos e a matriz simbólica que suporta as canções de amigo,
levando a uma leitura ingénua por parte daquele que ignora o alcance da
metalinguagem que é aí utilizada, ignorando ou fazendo vista grossa à
incorporação de uma sexualidade que é incorporada simbolicamente na linguagem
aí utilizada. O caso paradigmático de Bernardim Ribeiro salta-nos ainda mais à
vista, pela «persistente incompreensão dessa obra-prima de um Renascimento
ideologicamente medieval que é a Menina e
Moça. Terem alguns detectado «loucura» em Bernardim Ribeiro é na verdade um
diagnóstico do método de leitura que necessitou de postula-la.» (p. 15).
Descortinando sentidos outros que os imediatos, procurando
nos contextos e nas referências culturais e históricas da época, Helder Macedo oferece-nos
uma interpretação da poesia lírica medieval que se afasta do habitual sentido que
lhe era atribuído pela tradição literária e descobre inusitadas, surpreendentes
relações, de cariz mais erótico. Bem como ressalta, nessa tradição lírica, a
autonomia e o poder da sexualidade feminina que as interpretações mais
puritanas não deixavam adivinhar e que abalam os estereótipos que condicionam a
sua leitura e a sua compreensão. Como refere, ao abordar as cantigas de
escárnio de maldizer de D. João Garcia de Gillade, «O elemento subjacente à
agressividade masculina evidenciada em muitas cantigas de escárnio e maldizer é
o desconforto do homem em relação à incontrolada sexualidade da mulher, tradicionalmente
associada ao orgástico frenesi destrutivo das bacantes.» (Macedo, Camões e outros contemporâneos, 2017, p. 35) . Se as interpretações
da poesia medieval galego-portuguesa reconheciam nas sua canções uma
idiossincrática poética, no sentido em que esta tendia a fugir às convenções da
poesia pela sua irreverência, é, no entanto, necessário reabilitar esses
autores que foram empurrados para as margens da poesia. Com Stephen Reckert,
admirável estudioso da lírica medieval portuguesa, concorda Helder Macedo,
descobrindo nessas canções que “a realidade do amor, mesmo nas formas mais
cruas, pode ser altamente poética (e matéria de alta poesia) mas que nunca é
apenas «literária»” (Idem, p. 39).
Uma das relações mais interessantes nesta obra é aquela
que é estabelecida entre a poesia de Sá de Miranda e a lírica camoniana,
sabendo que Camões se inspirou na sua obra, bem como as influências mútuas de
Bernardim Ribeiro (provavelmente de origem hebraica) e Sá de Miranda: «Mas
quanto de Bernardim Ribeiro não tem também Sá de Miranda, de Sá de Miranda não
tem Bernardim, e de ambos não têm outros poetas que escreveram sob a sua aura.»
(Macedo, Camões e outros contemporâneos, 2017, p. 51) . O modo como Helder
Macedo aborda a lírica camoniana reflecte bem a sua intimidade com a
complexidade da sua obra, identificando as afinidades e os elos existentes com
os autores que lhe eram contemporâneos e que são reconhecíveis pelo rasto que
deixaram na sua lírica. Se muitas das leituras que incidem sobre a lírica de
Camões insistem sobre a sua ligação a Petrarca e sobre as fontes clássicas e
italianas, no entanto, Helder Macedo adverte o leitor para o não esquecimento
da importância da tradição lírica portuguesa e medieval, no universo da poesia
camoniana. Renuncia (e denuncia-a) a uma visão estereotipada daquele que foi um
poeta maior da nossa língua e do Renascimento, mostrando-o como alguém que
«viveu num mundo em transição» (Idem, p. 96). E, apesar das influências
eruditas do seu tempo, Helder Macedo reconhece em Camões um «poeta moderno», ao
colocar a experiência como «base do conhecimento» (Idem). Integrado numa
linhagem da tradição ocidental que inclui poetas como Virgílio, Ovídio, Dante e
Petrarca, herdeiro de um neo-platonismo vigente nessa época e de um pensamento
e linguagem clássicos, é sobretudo no modo como Camões opera subtis
deslocamentos semânticos na linguagem da sua época que se revela a sua
originalidade, apresentando metaforicamente uma nova visão do mundo que ainda
não conhece uma linguagem que a nomeie. Daí a sua contemporaneidade, no sentido
em que foi um poeta da inquietação e da dúvida, consciente dos limites do
conhecimento e de que o seu tempo, o de abrir novos caminhos, estava mais
próximo da ruptura do que da continuidade, da imanência do que da transcendência,
nesse «tactear» que fez a grandeza dos homens do renascimento. Um mundo,
também, que se revia mais na fragmentação da realidade e nos escombros do que
havia sido uma ideia da totalidade preconizada pelo platonismo. Era, portanto,
o poeta que reconhecia a contradição como matriz da própria realidade. E, se à
tradição da crítica literária embaraça um Camões boémio, Helder Macedo procura
dar a ver que esse Camões é o mesmo homem que escreveu a mais sublime epopeia.
Esse é, precisamente, o lado mais fascinante, o que lhe confere, na óptica de
Helder Macedo, a «espantosa modernidade da sua obra» (Idem, p.103) que advém do
facto de «Camões só poder ser entendido como um desconfortável todo» (Idem).
Alguns dos textos que integram o livro são
conferências que, como podemos deduzir, retomam os autores estudados por Helder
Macedo, mas há também outros que abordam e comentam a obra de vários autores
portugueses, como Eça de Queiroz, Pessoa, Cesário Verde, Manuel Teixeira Gomes,
Herberto Helder, Jorge de Sena, Mário Cesariny, José Saramago, José Cardoso
Pires, Sophia de Mello Breyner e muitos outros. Um dos mais interessantes
capítulos deste livro é, sem dúvida, o terceiro, intitulado “Testemunhos”.
Helder Macedo evoca aqui o grupo do Café Gelo, do qual fez parte (e
fala/escreve como se nunca tivesse deixado de fazer). As descrições vívidas, e
escritas com muito humor; sobre os escritores e artistas que integravam o
circuito do Café Gelo, numa época em que os cafés eram pólos culturais que
aglutinavam a cultura em Portugal e que diferenciavam, entre si, as diversas tendências
artísticas e literárias; constituem um notável fresco de uma época em que a
arte, a poesia e a literatura assinalavam esse gesto político e de dissidência,
face a um panorama anquilosado pela censura e pela perseguição política, e em
que a poesia (sobretudo) se reinventava engenhosamente pelas suas metáforas
para poder dizer o que não podia ser dito. Creio que se deve a Helder Macedo,
pelo seu testemunho extraordinário, a possibilidade de reconstituir o que foi
essa atmosfera, na sua época, e a importância dos movimentos que por ali
passaram e que se exilaram, para fugir à guerra e à miséria do país. Helder
Macedo fala de Manuel de Castro, um poeta desaparecido precocemente (com 36
anos) e que nos deixou uma obra notável, editada pela Língua Morta, Bonsoir, Madame, a qual reúne os livros Paralelo W, dedicado ao poeta e amigo
José Manuel Simões, e Estrela Rutilante. Helder
Macedo também refere no seu testemunho outros poetas e artistas que pouco
conhecemos hoje, como José Sebag, José Manuel Simões (do qual a Abysmo editou
recentemente Sobras Completas), José
Carlos Gonzalez, João Rodrigues, mas também autores que se tornaram míticos,
como Herberto Helder ou Cesariny. Rimos diante da ida a Londres, em simultâneo,
de Jorge de Sena e de Mário Cesariny, que não morriam de amores um pelo outro,
comovemo-nos diante da «pureza» de José Manuel Simões, que morreu no exílio, em
condições miseráveis. Diz dele o autor: «foi o mais puro de nós». (Macedo, Camões
e outros contemporâneos, 2017, p. 243). Jovens (nem todos), boémios,
talentosos, mas também (alguns deles) loucos e suicidas, os artistas e os poetas
do Café Gelo exigem a nossa atenção, muito para além do vago culto que se lhes
presta hoje e lhes confere uma aura (e uma visão caricatural) de maditos um
tanto esvaziada da sua carga política. Mais uma vez retomo a expressão de
Helder Macedo, quando refere a necessidade de analisar os contextos que
originaram essas poéticas. Não é possível compreender-lhes a grandeza a não ser
desse modo.
No último ensaio deste livro, a sua virtude é
também o seu risco, a atentar logo no título: “Oito séculos de Literatura”. O
mote é lançado para um texto que se propõe, de modo tão ambicioso quanto a sua
curta extensão (ainda que seja o texto maior). Porém, ainda assim, Helder
Macedo cumpre a sua promessa. Só é possível exercer a síntese como arte suprema
quando se domina o tema, os autores, o cruzamento entre eles. Uma visão histórica
da literatura sem cair num historicismo redutor é provavelmente a maior
qualidade deste texto, onde refere a predominância das mulheres no campo da
ficção e há espaço, ainda, para falar de autores numa panorâmica actual, como
os ficcionistas António Lobo Antunes, Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta,
Almeida Faria, Gonçalo M. Tavares e poetas como Nuno Judice, Paulo José
Miranda, António Cabrita.
Se contemporâneo diz respeito àquele que, aninhado
no passado, se revela no presente como intemporal ou, melhor dizendo, como
atemporal, pouco importa que ele tenha vivido na Antiguidade Clássica como
Homero ou Platão, no Império Romano como Ovídio ou Virgílio, na Idade Média e
no Renascimento, como Dante, Petrarca ou Camões, no século XVII como Montaigne
ou ainda mais próximos do nosso tempo. O ar que respiramos é o mesmo que eles
respiraram, a linguagem que usamos é a mesma, ainda que as formas de dizer
sejam diferentes. São profundamente modernos no sentido em que as suas vozes
nos habitam, vivem connosco, ainda que mortos, perseguem-nos e nunca nos deixam
esquecê-los, pela grandeza que neles mora. Sempre tão próximos, ainda que
longe. E ainda assim tão longe, mesmo que perto, na sua «obscura presença».
xxx
Maria João Cantinho nasceu em Lisboa, 1963. Passou
a infância em Lisboa e regressou em 1975 a Portugal, onde estudou Filosofia, na
Universidade Nova de Lisboa. Doutorada
pela Universidade Nova de Lisboa em Filosofia Contemporânea, sob a orientação
de Maria Filomena Molder e de Gérard Bensussan (Université Marc Bloch,
Strasbourg), é actualmente professora do Secundário, foi professora auxiliar no
IADE (entre 2011-2016), nas áreas de Estética e de História da Fotografia. É,
ainda membro integrado do Centro de Filosofia da Universidade Clássica de
Lisboa e do Centre d’Études Juives (Sorbonne), tendo organizado vários
congressos internacionais e co-editado livros sobre Levinas, Paul Celan, María
Zambrano. Publicou O Anjo Melancólico,
ensaio (2002), várias obras de poesia, ficção e literatura infantil. É membro
da direcção do PEN Clube Português, Membro da APE (Associação Portuguesa de
Escritores) e da APCL (Associação Portuguesa de Críticos Literários). Escreve
regularmente para a Colóquio-Letras da Fundação Calouste Gulbenkian, colaborou
com a LER, entre outras publicações de carácter literário e académico. Maria João Coutinho é ditora da Revista Caliban. Consultem o link : https://revistacaliban.net/
Bibliografia
Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? Em G.
Agamben, O que é o Contemporâneo e outros Ensaios. Chapecó: Argos.
Helder Macedo, F. G. (Campo das Letras). Viagens do
Olhar: Retrospecção, Visão e Profecia no Renascimento Português. Porto:
1998.
Helder Macedo, S. R. (1976). Do Cancioneiro de Amigo.
Lisboa: Assírio & Alvim.
Macedo, H. (1975). Nós, Uma Leitura de Cesário Verde.
Lisboa: Plátano.
Macedo, H. (1977). Do Significado Oculto de "Menina
e Moça". Lisboa: Moraes.
Macedo, H. (1980). Camões e a viagem iniciática.
Lisboa: Moraes.
Macedo, H. (1988). O Romântico e o Feroz. Lisboa:
& etc.
Macedo, H. (2007). Trinta Leituras. Lisboa:
Presença.
Macedo, H. (2017). Camões e outros contemporâneos.
Lisboa: Presença.
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