Um dedo de prosa com Cintia Moscovich
Assistam ao depoimento que a esritora Cíntia Moscovich
concedeu ao Blog Estudos Lusófonos
durante o IV Encontro Internacional
Conexões Itaú Cultural - Diálogos Galiza-Brasil, realizado em Santiago de
Compostela (Outubro 2011). Nestes
vídeos, Cíntia Moscovich fala de sua trajetória de constista, da presença da
cultura judaica em sua obra e comenta o belíssimo romance Diário da queda de Michel Laub.
Para assistir aos videos, cliquem nos links abaixo :
Nascida em 15 de
março de 1958 na cidade de Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul (Brasil),
Cíntia Moscovich é escritora, jornalista e mestre em Teoria Literária. Exerceu
atividades de professora, tradutora, consultora literária, revisora e assessora
de imprensa. Dentre os vários prêmios literários conquistados, destaca-se o
primeiro lugar no Concurso de Contos Guimarães Rosa, instituído pelo
Departamento de Línguas Ibéricas da Radio France Internationale de Paris.
Em 1996, publicou
sua primeira obra individual, O reino das
cebolas, que, numa co-edição entre a Prefeitura Municipal de Porto Alegre e
a Editora Mercado Aberto, mereceu a indicação ao Prêmio Jabuti da Câmara
Brasileira do Livro. Um dos contos que integram a coletânea foi traduzido para
o inglês e faz parte de uma antologia que reúne escritores judeus de língua
portuguesa. Em 1998, pela L&PM Editores lançou a novela Duas iguais - Manual de amores e equívocos
assemelhados, que recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura, na modalidade de
Narrativa Longa.. Em outubro de 2000, também pela L&PM Editores, lançou o
livro de contos Anotações durante o
incêndio. Com apresentação de Moacyr Scliar, a obra reúne onze textos de
temáticas diversas, com destaque ao judaísmo e à condição feminina (Prêmio
Açorianos de Literatura). Em 2004, publicou a coletânea de contos Arquitetura do arco-íris (Record), livro
que lhe valeu o terceiro lugar em contos no prêmio Jabuti, além da indicação
para o Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira e para a primeira
edição do Prêmio Bravo! Prime de Cultura. Em novembro de 2006, lançou o romance
Por que sou gorda, mamãe?, também
pela editora Record. Em dezembro de 2007, lançou seu sexto livro individual, o
romance infanto-juvenil Mais ou menos normal, que faz parte da
série Cidades visíveis, da Publifolha.
Ex-diretora do
Instituto Estadual do Livro, órgão da Secretaria de Estado da Cultura do Rio
Grande do Sul, a autora trabalhou como editora de livros do jornal Zero Hora,
de Porto Alegre, além de colaborar para jornais e revistas de todo o país. Em
outubro de 2006, participou da Copa da Cultura, na Embaixada Brasileira em
Berlim. Em novembro de 2007, representou o Brasil na Bienal do Livro de
Santiago do Chile e em 2008, foi uma das convidadas à Flip, Festa Literária
Internacional de Paraty. Em 2009, passou a integrar a antologia Os melhores contos brasileiros do século,
organizado por Ítalo Moriconi para a editora Objetiva e em 2011, integrou a
delegação brasileira no Projeto Rumos, do Itaú Cultural, em Santiago de
Compostela, na Espanha.
Um pouco de leitura
O telhado e o violinista[1]
Não há escolha: estamos presos ao livre-arbítrio
I. B. Singer
- Judia suja.
Eu, que nunca havia experimentado
a sério ser quem era - porque uma menina de nove anos apenas tem nove anos -,
passei, de uma hora a outra, a ser judia e a ser também suja - o ódio na boca
de Paula fazia com que as duas palavras se equivalessem. Fiquei ali, parada,
paradinha, olhando para a menina, que, subitamente, se tornara dona de uma voz
tão impositiva que se assemelhava à verdade. Sem sabermos, ela ou eu,
obedeciam-se a velhas tradições - era um conhecimento com que os ruins já nascem.
O ódio cintilando a ponto de zunir no miolo dos olhos negros, Paula repetiu a
ofensa, arrastando-a escandida:
ju-di-a-su-ja.
Então em mim, pela primeira vez,
se abriu uma violenta ferida de sangue, uma hemorragia de raiva e dor grande
demais para o espírito de uma menina. E a criança que eu era arranjou ainda
ânimo de fazer a pose da insolência, as duas mãos na cintura, e arranjou ainda
instinto para retrucar:
- E você é uma bocó. E uma burra.
Pronto, eu, como ela, também
obedecia a antigas tradições - pela minha lei de talião, ser bocó e ainda por
cima ser burra era pior do que ser suja. E a fúria com que a insultei
inaugurava em mim um novo sentido para a verdade, aquela da qual, enfim, eu também
podia ser autora. Recolhi a boneca do chão, penteei com a ponta dos dedos a
franja muito loura, muito simétrica, e agora desfeita: magoava-me que minha
Suzi fosse o inocente motivo de desavença. Dei as costas para Paula e para sua
porqueira de casinha em madeira pintada de azul e subi de dois em dois os
degraus do prédio. Empurrei com raiva a porta da área de serviço de nosso
apartamento, que estava sempre aberta.
Suja era ela. E toda a família
dela. E os filhos, netos e bisnetos que ela ia ter.
Desde a morte de meu avô e desde
que viera morar conosco, virava e mexia, a pose era a mesma: sentada na beira
do sofá, pés paralelos, cotovelo apoiado no joelho, queixo descansando na palma
da mão.
Nessas horas, o olhar de minha vó
se perdia num alheamento de fulgurações azuis, fixo na imprecisão de quem
recolhe lembranças encravadas numa rebarba de tempo. A imobilidade daqueles
instantes era sempre cortada por um longo - tão longo - suspiro, arrematado por
um oi, veis is mir, a lamentação dos judeus em todo o universo. "Pobre de
mim", comiserava-se ela. Que triste era aquilo.
Na sala, encontrei-a na mesma
posição, interrompendo-se num lamento que remontava a eras lá bem remotas. Sentei
a seu lado no sofá. Fiz beiço para contar:
- Vó, me chamaram de judia suja.
Ela, a quem nunca fez falta o
delicado essencial, me olhou espantada.
- Quem?
"Quem?" era pergunta de
espectro amplo. Podia também significar, "por quê?". Respondi, ainda
dolorida, que Paula, a menina que morava no trezentos e quatro, queria que
minha Suzi fosse a empregada no brinquedo de casinha. A vó, que farejava de
longe as disposições hierárquicas mal-intencionadas, teceu um impropério em
iídiche. Depois falou devagar, para que eu compreendesse:
-
Você é a menina mais limpa do planeta. Ela
que é uma mischigne. Entendeu?
Paula era, na voz da vó, uma
louca - dito no antigo dialeto, o insulto era muito maior. O mundo voltara a se
organizar, as terríveis histórias que sempre escutei passaram a fazer todo o
sentido. Abraçada à minha Suzi, descansei a cabeça sobre as pernas da vó,
aspirando o perfume da florzinha de jasmim - mimo que a dona da casa ao lado
lhe alcançava todas as manhãs e que ela, faceira, sempre trazia dentro do
sutiã.
Entremeava os dedos de juntas
nodosas em meu cabelo, crespo como o seu: fazia e desfazia a mesma trança numa
mecha cuidadosamente repartida. Pelos repetidos suspiros, soube que estava
angustiada - tanto que começou a reprisar aquela história de cossacos com
sabres em seus cavalos. Melhor não ter contado a ela sobre a briga: reavivava
na coitada uma dor grande. Não queria que ela sofresse.
E eu também fazia e desfazia uma
trança no cabelo da Suzi. Num suspiro que interrompeu minhas ternuras, fui
gêmea de minha vó: odiava tanto Paula quanto ela odiava os cossacos. [...]
Amor, corte y confección[2]
Por
casualidad, sólo por casualidad, Helena había olvidado que existían más cosas
en el mundo. Los
alfileres y agujas puestos en la almohadilla bordó, hilos formando finos
garabatos de colores, la cinta métrica enrollada sobre sí misma en un rincón de
la mesa, el dedal boca abajo, todo en orden, bastándose en la suficiencia del
mundo que se organizó. La tijera, con golpes secos sobre la tela de florcitas,
era lo único que se movía. La tijera y la mano que la empuñaba, mano segura y
fuerte, de venas salientes y articulaciones gruesas. Se dio cuenta por primera
vez aquella tarde, al mirar el movimiento de las tijeras y los dedos que las
guiaban. La tela de un estampado delicado temblaba tímidamente ante los golpes
de la tijera; lo constató no sin cierta sorpresa y un poco de desconcierto.
En plena toma de conciencia,
llamaron a la puerta y fue como si la arrancaran de ese lugar de orden propio y
bueno. Había más cosas en el mundo, por lo tanto, tenía que atender. Dejó las
tijeras abiertas sobre la mesa; el brillo del metal contrastaba con lo floreado
de muchos colores sobre un fondo oscuro, casi negro. Caminó sin prisa,
arrastrando las pantuflas de lana, dándose cuenta que las cosas podían
desorganizarse de vez en cuando, con el peligro que puede venir de esos
desequilibrios leves y eventuales. Abrió la puerta.
La niña tendría seis, siete años,
no más . Estaba parada, realmente parada, con los pies en unos zapatitos con
hebilla, calcetines blancos y vestido con la pechera de puntilla barata. Venía
de la mano de una señora de pelo fantásticamente rubio y boca roja, muy roja,
como una muñeca a quien se le exageran las facciones. De las dos - se dio
cuenta que era la mujer- emanaba un perfume casi asqueroso. La niña miraba a la
dueña de casa con ojos vivaces; esbozaba una sonrisa. Helena sintió un leve
vértigo, muy breve, como algo que a penas se insinúa. La mujer pintada de
manera escandalosa habló primero: venía por recomendación de una amiga, quería
que le hiciera una prenda a la hijastra. La niña bajó la vista, con una timidez
repentina. Helena trató de decir alguna cosa, no cocía para niñas, no lo hacía
más , pero su voz se había apagado, así que ya no había caso. Se limitó pues a
pedirles que entraran, cediéndoles el paso con el cuerpo en un movimiento lento
y forzado.
Estuvieron mirando revistas de
moda - L'enfant chic, ejemplar muy usado, primero - durante un largo cuarto de
hora; el olor dulce y ofensivo del perfume alcanzaba hasta el rincón más remoto
de la casa. La mujer ojeaba las revistas con dedos de uñas rojas como la boca,
buscando algún modelo, no sabía bien cómo, no sabía bien qué color, era la
primera comunión de la sobrina, ¿por qué era tan difícil encontrar algo que le
sirviera a una niña? La niña estaba sentada en el sofá al lado de la mujer, sin
el más mínimo interés en lo que pasaba; miraba alrededor con los piecitos
colgando en el aire. Helena sintió una vieja angustia y tuvo ganas de salir de
allí, deseo que se convirtió en realidad. Pidió permiso, ya volvía, ¿desean
tomar algo? La mujer agradeció, no, no quería nada; la niña no contestó nada y
se limitó a agarrar con los dedos el dobladillo de su vestido y retorcerlo,
subiéndoselo hasta las rodillas. Helena fue a la cocina y trajo dos vasos de
jugo, sin saber a ciencia cierta a quién estaba destinada la amabilidad. La
mujer, que estaba entretenida eligiendo y encontraba todo poco agradable,
rechazó nuevamente el ofrecimiento. La niña agarró el vaso con ambas manos con
una cautela estudiada. Tomó el jugo a sorbos cortos, lo tomó todo, todito y
volvió a poner el vaso en la bandeja, que depositó sobre el mantelito de
croché. Se levantó, así, de repente, tomando impulso desde el sofá Dio unos
pasos y se quedó allí, al lado de la madrastra, parada, realmente parada, con
los brazos para atrás del cuerpo y las manos en la espalda. Helena se puso
alerta, en un estado de atención extraordinaria, como en un vértigo que le
venía de la nuca o de la espalda, no podía precisarlo. La niña estaba allí,
parada de manera provocativa en su belleza de la infancia, radiante, plena,
completa, losa de la piel y brillantes en los ojos. La mujer no prestó mayor
atención al hecho.
Un cuarto de hora más y una brisa
de atardecer movía las cortinas, haciendo flamear el vual blanco. A esa altura,
la niña caminaba por la sala, toqueteando los objetos que estaban en los
estantes. Helena no tenía más interés en la mujer, se concentró, tensa e
inquieta, en los movimientos de la pequeña quien, ahora, en puntas de pie,
trataba de alcanzar una muñeca de trapo que se veía en lo alto de los estantes.
Anticipándose a la tragedia, la dueña de casa se adelantó y con una agilidad
que no tenía desde hacía mucho, buscó el juguete, se estiró y se lo entregó a
la interesada, maternal y con cuidado. La pequeña agradeció y se sentó en el sofá,
con la muñeca en la falda. Helena se acomodó, tranquila, en el sillón pues
algún equilibrio se había restituido.
Finalmente, la señora cerró el
Burda con gesto decidido, suspiró metida en una idea silenciosa y, sin mirar
otra cosa más que un punto impreciso en la pared, dijo ven aquí a la niña.
Obedeciendo la orden, la niña dejó la muñeca con displicencia ; la abandonó en
el asiento y se puso frente a la madrastra. La mujer blandió el dedo en el aire
formando volutas carmesí, quiero así, decía, diseñando el escote en la pechera
de puntilla, redondo ¿usted entiende? Helena afirmó con la cabeza. La otra
seguía mostrando el modelo que quería, la niña con los brazos abiertos a los
lados del cuerpo, las manos colgando laxas, se dejaba ser utilizada como maniquí,
dando una lenta vuelta sobre sí misma, permitiendo que allí se diseñara el
vestido de mentirita; y el esmalte rojo se movía ante la vista cansada de
Helena, mangas flojas, con un corte que rodee la cintura, rematado por un tope
atrás, que le apretara a la altura de los riñones , sacudía a la niña, así,
aquí, así, entiende? Entendía, entendía, ya había hecho muchos con ese corte y
trató de recomendarle que comprara una tafeta sin mucho cuerpo. En las casas
Safira debía haber buenas telas, las mangas de organdí y la cinta de la cintura
de satén, le parecía bien? Ahora, a arreglar una cita; traería la tela al día
siguiente. Se pusieron de acuerdo. Antes, sin embargo, debía tomar las medidas.
Esperen un poco. [….]